História das rádios livres no Brasil

História das rádios livres no Brasil

Editorial de 2003 pulicado no Centro de Mídia Independente.

História das rádios livres no Brasil
By Marisa Meliani 13/03/2003 At 16:37

A radiodifusão não-oficial também aparece paralela à história do rádio no Brasil, primeiro com manifestações isoladas e sem caráter político. As primeiras notícias surgem em 1931, quando o publicitário Rodolfo Lima Martensen coloca no ar uma emissora não-autorizada na cidade de Rio Grande de São Pedro, no Rio Grande do Sul. Construída por um amigo, Antoninho Barreto, a rádio vem coroar um sonho de Martensen.

“A atividade radiofônica estava envolta num halo de prestígio e sofisticação, só comparável ao glamour que procedia de Hollywood. Não tive dúvidas, dediquei-me ao rádio! Na ânsia de realizar meu sonho, num ímpeto natural da juventude, nem pensei em pedir licença e oficializar as transmissões.”69

Em agosto daquele ano, Martensen transmite o primeiro programa de rádio da cidade e repete a dose no fim de semana

No dia seguinte da segunda transmissão, o pai do radioamante é procurado pelo chefe da Estação Telegráfica da Junção, o Dentel da época e do lugar, que leva o seu apoio à iniciativa e se dispõe a oficializá-la. A emissora não-autorizada é levada adiante por Raul Werneck, que funda a Rádio Sociedade do Rio Grande do Sul, dando a Martensen o cargo de diretor de emissão.

A Cultura AM de São Paulo também nasce como emissora não-oficial. Segundo o jornalista e radialista Mauro Pires, um dos precursores do rádio no Estado, a rádio vai ao ar pela primeira vez em 1933 com o prefixo DKI – A Voz do Juqueri, funcionando na garagem da residência do farmacêutico e industrial Cândido Fontoura, conhecido como Tio Candinho.

O sucesso de sua programação é enorme e após a intervenção da polícia, seus proprietários resolvem legalizar a emissora. Em 16 de junho de 1936, é inaugurada oficialmente a Rádio Cultura AM de São Paulo, a “voz do espaço”, “o melhor som de São Paulo”.

Pioneira em plena ditadura

A história do movimento de rádios livres no Brasil tem como marco inicial uma iniciativa isolada. A Rádio Paranóica, de Vitória, no Espírito Santo, montada em fevereiro de 1971, no auge da ditadura militar, sob o governo de Emílio Garrastazu Médici, é considerada a primeira rádio livre do País.

Eduardo Luiz Ferreira Silva, na época um jovem de 16 anos de idade, gostava muito de eletrônica. A FM ainda não existia e em sua cidade só funcionavam duas rádios oficiais em AM, a Espírito Santo e a Capixaba. Depois de desmontar um receptor de rádio, ele imagina um esquema eletrônico e, como desafio à sua própria capacidade, remonta um transmissor a válvula de 15 Watts.

Batizada de Paranóica FM, a rádio é organizada com a ajuda do irmão, Joaquim Ferreira da Silva. O pai, comerciante e dono de um bar, sequer fica sabendo que seus filhos haviam montado uma estação de rádio e muito menos que tinha sido instalada no banheiro de seu estabelecimento.

“Primeiro conseguimos atingir as ruas e os quarteirões, mas como eu era muito precoce, fiz outro projeto de 300 Watts. Aí, atingimos Vitória inteira. Começamos a concorrer com as emissoras oficiais e a Paranóica ficou famosa. A gente tocava música, metia o pau nos comerciantes que roubavam no peso, reclamava da prefeitura. Se der para comparar, a nossa programação parecia o Aqui Agora, do SBT”, conta Eduardo.

“A gente era tão bobo, tão inocente com o que fazia, que até dava o telefone do bar. Não sabia que era proibido, sabia que eu atrapalhava as outras rádios, mas não imaginava que a coisa era tão brava. Eu abria os jornais e era tudo bonitinho, não acontecia nada”, continua. A rádio transmite apenas durante seis dias, das 8h às 22 h, atravessando a Hora do Brasil.

Resultado de uma denúncia, que Eduardo atribui a um jornalista que teria acusado os irmãos de subversão, a transmissão da Paranóica é interrompida de forma violenta. “Chegou um camburão preto no bar, os caras foram entrando e prendendo todo mundo que estava ali, inclusive o meu pai, na época com 56 anos. O Joaquim fugiu pro mato e conseguiu escapar. Quebraram tudo, destruíram o bar, vasculharam a casa do meu pai, que ficava no andar de cima. Apreenderam livros, cartazes e rasgaram os colchões procurando alguma coisa.”

Nessa tarde, Eduardo e seu pai são levados para a Polícia Federal e lá são separados em duas salas. As pessoas que estavam no bar são interrogadas e liberadas em seguida. “Fiquei numa sala com uma lâmpada acesa pendurada, um cara na porta com uma metralhadora apontada pra mim. Não tinha cadeira e eu sentava no chão. Mais ou menos às oito horas da noite, entrou um outro cara que começou a me interrogar: quem mandou instalar a rádio, se eu conhecia tal pessoa… Aí ele saía e entrava outro, fazendo as mesmas perguntas. Isso durou um dia e meio até que me liberaram.”

Eduardo não chegou a sofrer violência física, segundo ele, “por ser menor de idade” e, hoje, pode até brincar com a situação. “Embora eu ouvisse uns gritos no corredor, a única agressão física foi uma surra que eu levei do meu pai, quando ele chegou em casa.”

O pai de Eduardo fica preso por três dias, enquanto a polícia vasculha a sua vida para encontrar possíveis ligações políticas. “Ele era semi-analfabeto e foi isso que o salvou. Meu pai morreu sem saber porque sofreu tanta violência”, lamenta.

A prisão traz problemas para Eduardo e seu pai. “Nós fomos discriminados porque diziam que éramos contra o governo. Fiquei muito chateado, não consegui ser entendido naquela época. Meu pai sofreu boicote de comerciantes, meus amigos se afastaram de mim e eu me sentia muito rejeitado.”

Mais tarde, em 1994, Eduardo entra com pedido de habeas data e tem acesso ao seu processo. “Eles alegaram que a rádio era uma armação dos comunistas para desestabilizar o regime. Foi no processo que eu descobri que tinha sido denunciado pelo tal jornalista, hoje muito famoso aqui em Vitória.”

Para compensar a violência que sofreu, Eduardo estudou bastante. Hoje, aos 40 anos, ele é engenheiro e professor da Escola Técnica do Senai, em Vitória. “Fiquei esperto. Agora eu sei que a comunicação precisa ser democratizada e trabalho por isso. Ensino a fazer transmissores, monto rádios no interior, em Ondas Curtas, porque é o formato ideal para objetivos de comunicação popular. Já ajudei a montar mais de 80 emissoras em todo o País, tudo no interior. Nosso ideal de rádio livre é voltado para a comunidade e sem fins lucrativos.”

Em Vitória, com a assessoria de Eduardo e outros radioamantes, ocupam a faixa de FM, entre outras, as rádios Sempre Livre (106.9 mHz), na Universidade Federal do Espírito Santo, a Musical, especializada em música funk, a evangélica Adonai, a Nativa FM, a Força Jovem, Galáxia FM e Litoral, todas regulares, sem fins lucrativos e com potências médias entre 15 e 30 Watts.

Num certo verão, em 82

Dar voz às figuras do técnico em eletrônica e ao amante da música faz das rádios sorocabanas a mais positiva expressão do prazer em fazer rádio.

O movimento de rádios livres pode ser dividido em três momentos distintos. O Verão de 82, em Sorocaba, onde o fazer rádio virou febre local; o boom de 1985, detonado pela Rádio Xilik, da PUC-SP, quando o ideário europeu toma conta da imprensa escrita; e o terceiro e atual momento, estimulado pelas lutas pela democratização da comunicação e pela apreensão em 1991 da Rádio Reversão, uma das primeiras rádios livres regulares no Brasil.

A primeira rádio livre a transmitir em Sorocaba é a Spectro, que entra no ar em 1976, operada e animada por um garoto de 14 anos, cujo maior prazer, segundo a imprensa, é “atingir a casa do vizinho com suas transmissões”. Com um transmissor copiado de revistas eletrônicas e uma antena que não passa de um amontoado de fios de cobre enrolados em volta de sua casa, o operador da Spectro mal consegue satisfazer o seu desejo. Vai em busca de inovações técnicas e atinge um quarteirão. Depois, cerca de um quilômetro.

Em 1980, esse rapaz consegue montar um novo transmissor que alcança um raio de 10 km, e passa a emitir diariamente, sempre das 20 às 22 horas, tocando muita música jovem. Para medir a audiência, a Spectro coloca no ar o número de telefone de alguém que não saiba o endereço da rádio. A média é de 20 telefonemas por dia.

A evolução técnica permite que os transmissores sejam montados no tamanho de uma fita cassete, com a miniaturização facilitando a fuga eventual do Dentel. Até o final de 1981, já estão no ar as rádios Estrôncio 90, Alfa 1, Colúmbia, Fênix, Star e Centauros.

A Centauros posteriormente muda de nome para Voyage e se junta à Spectro para formar a mais popular rádio livre de Sorocaba: a Spectro Voyage Clandestina – SVC. Estava nascendo o movimento de rádios livres de Sorocaba, que contou com mais de 100 emissoras no ar, com 43 comprovadas, formando o chamado Verão de 82 da radiodifusão livre no Brasil.

De fato, a cidade de Sorocaba, localizada a 100 Km de São Paulo e com cerca de 300 mil habitantes, concentra todas as condições para abrigar o primeiro grande movimento de rádios no Brasil. Conhecida como a “Manchester Paulista”, pelo alto nível de industrialização, a cidade é repleta de técnicos em eletrônica. Contribuem, para isso, os esquemas para montagem do transmissor, com peças que podem ser compradas a custo baixo em qualquer loja especializada, que são distribuídos de mão em mão.

O movimento nasce de forma autêntica, sem publicidade e com objetivos de organização autogestionária. A verdadeira mania que surge em Sorocaba leva os radioamantes a criar o Conselho das Rádios Clandestinas de Sorocaba, na tentativa de obter organização e impedir as interferências sobre as freqüências oficiais e mesmo sobre outras não-autorizadas.

É também objetivo do Conselho fazer com que as rádios caiam no gosto popular. Mas, o coletivo é extinto um mês depois. “Foi impossível controlar. Dávamos um número no dial para uma rádio e surgiam três novas rádios no mesmo lugar”, afirma um de seus integrantes, em entrevista à imprensa. “Nossas rádios são uma revolta contra o monopólio das FM. O governo brasileiro vai ter que abrir um espaço para as rádios piratas”, diz um dos animadores da Spectro Voyage.

As primeiras pressões vêm do jornal O Cruzeiro do Sul, que se sente agredido com os palavrões, comentários obscenos e palavras de ordem contra o governo. Em editorial, em 1982, o jornal aconselha: “Quem pretende curtir o rádio como hobby, ajuste-se às normas vigentes e passe a integrar o circuito dos adeptos do PX, que prestam inclusive relevantes serviços à comunidade.”

O PX Clube de Sorocaba envia então ofício ao Dentel, denunciando quatro menores e exigindo providências contra as rádios livres. A fiscalização não encontra os transmissores e, sem provas, não detém ninguém. O movimento cresce com rapidez. Com um alcance médio de 5 Km, surgem a Staying Power, Speed 4, Sensación, Studio, Jegue, Punk I, Punk II, Delta, Big Ben, Super Star, Pirata, Namorada, Flash Back, Alvorada e outras, num total contabilizado oficialmente de 43 rádios.

A legalização

A discussão sobre a legalização entra em pauta e o próprio jornal O Cruzeiro do Sul defende em editorial a liberação das FMs comunitárias, como forma de garantir a expressão e a criatividade da população. A Spectro Voyage se posiciona a favor da liberação de uma faixa de FM, de 107 a 109 mHz, para transmissões livres e não-comerciais.

Mas o Dentel arma-se do Código Brasileiro de Telecomunicações e ameaça os radioamantes com a pena de prisão. Muitas rádios saem do ar e, em março de 1984, há apenas 15 emissoras funcionando, que também acabam extintas. Ao mesmo tempo, as rádios livres ocupam seus espaços em Campinas (SP), no Rio de Janeiro e em cidades do interior de Goiás, Minas Gerais e da Paraíba.

Embora se possa afirmar que a falta de organização das emissoras sorocabanas tenha limitado a sua defesa perante o Estado, não é correto apontar a causa do fracasso do Verão de 82 pelo fato de ter sido apenas um movimento de técnicos em eletrônica. O refluxo aconteceu mais pela ação eficaz do Dentel do que pelo caráter de isolamento em que se davam as intervenções, a maioria com caráter de hobby.

As rádios de Sorocaba não resultaram de projetos culturais ou de movimentos sociais, além de não terem resolvido questões como a sustentação financeira. Os conteúdos das programações eram apartidários, com muita música alternativa e a forma como essas rádios proliferaram, exercendo a livre expressão, sem pirataria e de forma autogestionária, as colocam como pioneiras no movimento brasileiro.

Os contornos dessa intervenção coletiva foram de desobediência civil declarada, e o apartidarismo em que se manifestaram as aproximam de uma forma pura de luta pela democracia. O fato de dar voz às figuras do técnico em eletrônica e do amante da música faz das rádios sorocabanas a mais positiva expressão do prazer em fazer rádio.

Atualmente o movimento retorna a Sorocaba, com várias emissoras ocupando o dial da FM. A caseira Ecologia FM, no 104 mHz, por exemplo, operada por dois jovens irmãos, trabalha com um micro-transmissor e pensa em se organizar em uma nova associação de rádios livres. Segundo a imprensa, a cidade hoje possui cerca de 60 rádios livres, transmitindo músicas de todos os estilos, do rap ao sertanejo, notícias de bairro e programas de humor.

A TV Livre pioneira da América Latina

É também em Sorocaba, em 1985, que surge a primeira experiência conhecida de televisão livre no continente latino-americano: a TV Livre de Sorocaba. Organizada por Luiz Algarra, um ex-repórter da TV Gazeta-SP, Cláudio Gambaro, técnico em transmissão, e Carlos Alberto de Souza Filho, um jovem estudante de 17 anos, a TV Livre faz a sua primeira aparição no Canal 16, em UHF, em 18 de agosto de 1985.

Com a idéia na cabeça, o trio começa a trabalhar coletando recursos para a compra de equipamentos. O transmissor é montado a partir de uma sucata de um retransmissor da TV Globo local. “Era uma carcaça, nós desmontamos, limpamos, pintamos e o deixamos novinho em folha. O QG da TV Livre era dentro da pensão onde o Algarra morava. Para transportar, era só colocar os equipamentos em uma perua kombi e, sem compromissos com horário ou regularidade, a gente colocava a tevê no ar”, conta Carlos, hoje com 27 anos e um bem sucedido videomaker.

O primeiro programa é totalmente gravado durante uma festa do PMDB, em São Paulo, onde os operadores recolhem depoimentos de políticos, artistas e intelectuais. Em uma das entrevistas, o atual presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, se solidariza com a democratização da comunicação e relembra o seu passado em defesa da causa.

“Nós não tínhamos nenhum objetivo político maior. O que queríamos era criar a discussão: por que Sorocaba não pode ter uma TV? Por que temos que consumir o padrão Rio de Janeiro? Queríamos mesmo era uma televisão regional”, esclarece.

A TV Livre de Sorocaba provoca interesse e é procurada pela grande imprensa. “A partir disso, o Dentel passou a pressionar e recebemos apoio de muita gente. O Jânio Quadros deu um cheque de 20 milhões de cruzeiros, na época uma nota alta, na mão do Algarra, porque concordava com a regionalização da comunicação”.

O dia da estréia, 15 de agosto, aniversário da cidade, tem de ser adiado porque a cidade amanhece “polvilhada de polícia e agentes do Dentel”. No dia 18, a TV Livre de Sorocaba é inaugurada e funciona mais quatro meses, até que Cláudio e Algarra são chamados na Polícia Federal, em São Paulo, onde têm uma boa surpresa.

“Eles explicaram os objetivos da TV, que a gente queria mesmo era uma programação local, e como resultado ganharam uma concessão de TV a Cabo em Sorocaba”, conta Carlos. Até hoje os felizardos não exploraram o presente porque não têm capital para isso. Segundo Carlos, o que queriam, eles conseguiram. Hoje Sorocaba tem uma programação local, levada ao ar inclusive pela Rede Globo.

Xilik, desobediência civil

“Rádio Xilik.

Rádio Livre urgente,

em 106.4 mHz, aberta a todos,

exceto a generais ativos e passivos,

senhoras de Santana, falsários,

mamães que dizem sempre mentirinhas,

falocratas, crianças que falam sempre a verdade,

demagogos, juízes evangélicos.”

São essas as primeiras frases da Rádio Xilik, em sua pioneira intervenção na cidade de São Paulo, em 20 de julho de 1985. Fortemente influenciada pelo movimento europeu, a Xilik introduz na imprensa escrita a discussão sobre a democratização da comunicação e a política no conteúdo das programações.

A Xilik leva a idéia da rádio livre a uma parcela da população considerada “formadora de opinião”. Insistindo na prática da desobediência civil, ela rechaça as iniciativas de legalização, que considera a reprodução do controle sobre a comunicação. Para o grupo, é impossível normatizar o desejo e a rádio livre deve continuar a atravessar a comunicação oficial indefinidamente porque é esta a sua verdadeira função dentro da democracia.

Em agosto de 1985, os organizadores da rádio, entre eles estudantes e professores da PUC-SP e da USP – Universidade de São Paulo, trazem o psicanalista francês e ideólogo do movimento europeu de rádios livres, Félix Guattari, para uma palestra transmitida ao vivo do Pátio da Cruz, na universidade católica.

É a segunda visita de Guattari ao Brasil e, dessa vez, ele reúne cerca de seiscentas pessoas interessadas em conhecer a sua opinião sobre o assunto e detalhes de sua experiência na Rádio Tomate, na França. Guattari empolga, fazendo boa parte dessas pessoas sair da reunião com intenções de montar uma rádio livre.

Tudo começou…

A idéia de montar a primeira rádio livre na capital partiu de um grupo de doze pessoas – auto-denominado os “doze apóstolos”, entre eles o professor Arlindo Machado, Caio Magri e Marcelo Masagão, que, posteriormente, lançam juntos o livro “Rádios Livres. A Reforma Agrária no Ar”, única publicação sobre o tema no País.

Durante os noticiários da morte do presidente Tancredo Neves, as informações controvertidas e desencontradas geram no grupo a vontade de ter uma rádio – a exemplo das que existiam em Sorocaba – que pudesse fornecer a versão real dos fatos. Iniciando com um transmissor de 6 Watts, montado dentro de uma panela e escondido no interior do Centro Acadêmico de Ciências Sociais da PUC, o grupo passa a transmitir para o público da própria universidade.

O objetivo é divulgar o pensamento das rádios livres e, para isso, antes das transmissões, começam a avisar os jornais através de comunicados. “A rádio era mais lida do que ouvida”, afirma André Luis B. Picardi, o Sombra da Xilik. A emissora obtém páginas inteiras de jornais como a Folha de S.Paulo, O Estado de São Paulo, Jornal da Tarde e matérias completas nas revistas Veja, Afinal e Isto É.

A intenção é provocar a repressão do Dentel, contar com mais divulgação e expandir o movimento. A audiência é difícil e eles partem para um transmissor de 40 Watts, recebendo as primeiras respostas, com o envio de fitas e cartas de ouvintes. A Xilik joga no ar: “Que mil rosas murchem, que mil transmissores floresçam”. A bandeira da rádio livre é hasteada, com direito à repressão, sob o signo da desobediência civil e da rua Santa Efigênia, em São Paulo, onde os equipamentos são “baratos e fáceis de montar”.

No bojo da Xilik, surge a primeira tentativa de organizar o movimento, através da Coralivre – Cooperativa de Radioamantes, com objetivo de divulgar, assessorar e proteger da repressão as novas emissoras que chegam com força no dial. As rádios Ítaca, Totó Ternura e Molotov são montadas com o transmissor emprestado da Xilik.

Na favela de Ermelino Matarazzo, o grupo convence os moradores de que é mais fácil montar um transmissor de rádio do que um alto-falante e nasce a Rádio Ermelino Matarazzo, na zona leste da capital.

Campanhas e repressão

Se não há meios para divulgar a rádio, o pessoal da Xilik inventa, sempre com irreverência. Organizam a “Marcha sem Motivo”, com as palavras de ordem “Venha e reivindique o que quiser”, que sai do Masp, na Av. Paulista, até o TUCA-Teatro da Universidade Católica, no bairro das Perdizes, com total sucesso.

Fazem campanhas, como ensinar os ouvintes a remarcar os preços nos supermercados, durante o Plano Cruzado. Ensinam a plantar maconha dentro de casa e pregam “Vá pela porta de trás do ônibus porque está caro e o ônibus é um dever do Estado e um direito do cidadão”.

O Dentel tenta por duas vezes fechar a Xilik, mas encontra a oposição da própria reitoria da PUC e do seu Grão-chanceler, o cardeal de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns. Esse apoio é definido por André como “uma relação de respeito e amizade”. A Xilik também promove eventos culturais, como a transmissão na PUC do filme Je Vous Salue Marie, proibido na época. A polícia invade a universidade e tenta apreender a fita, sem qualquer sucesso.

Antes de cerrar a voz, a Xilik provoca reações irritadas das autoridades federais da Nova República. A transmissão do programa “Os Troncudos”, inspirado nos Menudos e no caso Baumgartem, citando o general Newton Cruz, faz com que o ministro das Comunicações da época, Antonio Carlos Magalhães, publique uma portaria70 exigindo a imediata e eficaz repressão às rádios não-autorizadas. É nesse período que ACM recebe o apelido de “Toninho Malvadeza”.

As sementes do projeto

Deflagrado o movimento, um dos objetivos do grupo, eles decidem em comum acordo o fechamento da rádio. Tentando explicar o fim da Xilik, Caio Magri diz que um dos motivos foi a tentativa de profissionalizar a estrutura, com funcionários pagos pelos produtores. “Isso desmontou o grupo, além de problemas técnicos, como o de não possuir um transmissor compatível com nossas aspirações. Queríamos sair da PUC, mudar de público”, afirma.

Os resultados, na sua opinião, são muitos. “Foi a primeira experiência que tentou politizar, criar a desobediência civil. A Xilik foi referência para outras rádios e colocou na mídia a discussão sobre a possibilidade de fazer rádio livre. Tínhamos uma estética agradável, com peças radiofônicas, humor e críticas políticas”.

Outra iniciativa da Xilik é a experiência da TV Cubo, uma TV livre montada especialmente para a campanha do ex-deputado João Batista Breda. Ela vai ao ar, pelo canal 3, no dia 27 de setembro de 1986, a partir das 18h45.

A TV Cubo tem vida curta, sofrendo as consequências da falta de domínio técnico sobre a teledifusão. Mais tarde, em 1992, Marcelo Masagão tenta reavivá-la, com uma intervenção prometida para o canal 6. Mas os sinais da Rede Globo são ampliados e cobrem a transmissão livre.

A Xilik é responsável pelo início da popularização da questão da democratização da comunicação, mesmo jogando na imprensa discussões sofisticadas. Além da rádio, os participantes levam essas questões a diversas entidades, promovendo debates e tentando introduzir a prática da radiodifusão livre nos movimentos organizados.

Voz da Xilik

Conheça trechos da primeira intervenção da Xilik na Capital, no dia 20 de julho de 1985.

“BG BIFO:

Rádio Xilik. Rádio livre urgente, em 106 mHz, aberta a todos, exceto a: generais ativos e passivos, senhoras de Santana, falsários, mamães que dizem sempre mentirinhas, falocratas, crianças que falam sempre a verdade, demagogos, juízes evangélicos.

Ship Ahoy sobe e manda fogo até o fim.

B: Rádio Xilik. Rádio Livre urgente chama a parte do mundo sonoro livre.

Polifonia.

Entra “4 canni” de Lucio Dala. Vai a BG.

B: Rádio Xilik chama Rádio Alice de Bolonha, Itália (…).

“Toxika”do Plastic People entra firme. Depois BG.

B: Eles têm medo dos velhos por suas memórias.

Eles têm medo dos jovens por sua inocência.

Eles têm medo dos trabalhadores.

Eles têm medo da ciência.

Eles têm medo de livros e poemas.

Eles têm medo de discos e gravações.

Eles têm medo dos músicos e cantores.

Eles têm medo dos escritores.

Eles têm medo dos filósofos.

Eles têm medo dos prisioneiros políticos.

Eles têm medo das mudanças na cúpula de Moscou.

Eles têm medo do futuro.

Eles têm medo de sair às ruas.

Eles têm medo uns dos outros.

Eles têm medo de Karl Marx.

Eles têm medo de Lênin.

Eles têm medo da verdade.

Eles têm medo da liberdade.

Eles têm medo da democracia.

Eles têm medo da declaração universal dos direitos do homem.

Eles têm medo do socialismo.

ENTÃO, POR QUE DIABOS ESTAMOS COM MEDO DELES?”71

Outras rádios

Nesse segundo momento, mais de 50 rádios vão ao ar na capital, a maioria por iniciativa de estudantes universitários, que transmitem não só para o meio acadêmico, mas também para bairros e comunidades.

Experiências importantes são concretizadas como a Rádio Vírus, instalada no alto do Complexo Hospitalar do Hospital das Clínicas, no quarto de médicos residentes. Com uma proposta arrojada, ela inova a linguagem e trabalha com propostas estéticas mais elaboradas. A Rádio Sei Lá, com características comunitárias, transmite para o bairro do Ipiranga, na Capital, e busca incrementar a produção cultural local.

A Rádio Dengue, operada por Chico Lobo e outros militantes do Partido dos Trabalhadores, inaugura a rádio livre de informação e oferece jornalismo em sua programação. Comprometida com ideais partidários, mas como resultado da iniciativa independente de seus militantes, nasce dentro de um núcleo do PT, no bairro da Barra Funda, em São Paulo, e tenta manter vínculos com a comunidade local. Participa de campanhas de vacinação e perfura o oficialismo, sendo reconhecida pelo governo estadual com um diploma de prestação de serviços de utilidade pública.

A Totó Ternura, uma homenagem irônica a Antonio Carlos Magalhães, vai ao ar na região em torno da USP, e uma série enorme de emissoras livres tomam conta da FM, como a Trip, Molotov, Neblina, Patrulha, Invasão, Ilapso, Ítaca, Cão Fila, Livre Gravidade, Terapia, Ladrões do Mar, Radionízios, Capitão Gancho, Nova Era e muitas outras.

Outros Estados

Considerada pela imprensa a primeira rádio livre carioca, a Frívola City entra no ar, no dia 30 de agosto de 1986, na freqüência 92.0 mHz e com uma potência de transmissor que varia entre 5 a 10 Watts. Os integrantes da rádio não escondem a simpatia que têm, na época, pelo candidato ao governo do Rio de Janeiro, Fernando Gabeira.

Segundo um de seus participantes, em declaração à imprensa, “a reforma agrária na terra fracassou, foi reprimida. Nós estamos lutando pela reforma no ar. Estamos questionando a política de concessões do governo, que só libera emissoras para apadrinhados do poder. Queremos inverter esse padrão de informação nacional, homogeneização que torna aceitável a destruição dos índios e o silêncio dos negros e dos homossexuais, por exemplo”.

Outra experiência importante no Rio de Janeiro é a Rádio Petrópolis, que entra no ar no mês de abril de 1986, colocando um transmissor de 500 Watts de potência em funcionamento e superando todas as rádios livres no Brasil. Um raio de alcance suficiente para atingir toda a capital, Niterói, Baixada Fluminense e sul de Minas Gerais.

Os operadores são médicos, empresários, um diretor de banco e um arquiteto, o que explica as condições financeiras do grupo para montar um equipamento tão sofisticado. A programação emitida depois das 18h é basicamente musical, com ênfase no rock progressivo inglês, mas sem esquecer a bossa nova, o jazz e música eletrônica. Segundo eles, a proposta da rádio é provar que é possível oferecer a mesma tecnologia de transmissão das emissoras profissionais e comprovar o crescimento do movimento em todo o País.

Receios e prazer

O grande obstáculo para o sucesso e vida longa dessas primeiras rádios livres pode ser facilmente localizado na organização e na estrutura de funcionamento. A maior parte dos operadores eram estudantes, sem recursos financeiros para sustentar os projetos, ou trabalhadores que se dedicavam ao rádio apenas nas horas vagas.

O receio de que rádios com objetivos comerciais se aproveitassem do movimento para concretizar seus projetos de comunicação, a exemplo do que aconteceu nos movimentos italiano e francês, causou um certo preconceito em discutir francamente os projetos financeiros para a sustentação das emissoras e a possibilidade de usar publicidade local como fonte de recursos. Em consequência, as rádios começam a fechar e a esvaziar o movimento.

Outro dado importante é que muitas emissoras nascem nesse momento pelo simples prazer de fazer rádio, o que não as desqualifica no movimento, mas empobrece o conteúdo das emissões. A experiência européia fornece pistas de que as rádios livres mais organizadas e regulares são parte integrante de projetos culturais e de movimentos sociais, e são, na verdade, o canal de expressão para conteúdos que não encontram representação nos meios de comunicação oficiais. Ter o que falar é tão importante quanto ter para quem falar e de que forma falar.

A luta em outras frentes

Os debates sobre a vantagem da legalização se iniciam e há grupos que discordamda necessidade de manter laços com o Estado, sob pena de oficializar o movimento.

No Brasil, existe um movimento nacional de rádios livres, porque há, em todo o País, correntes de idéias e de opiniões favoráveis à sua instalação, do mesmo modo que há inúmeras pessoas que passam da idéia ao ato de instalação e emissões livres. O conjunto dessas ações tem em comum, nacionalmente, o significado de não aceitar as restritivas e comprometidas leis sobre a radiodifusão e a comunicação social.

A importância política da Reversão, além de sua própria experiência, nasce também do empenho coletivo do movimento. No auge de suas transmissões, num trabalho de divulgação, ela é alvo do interesse da grande imprensa, provocando reportagens de páginas inteiras nos grandes jornais e, pela primeira vez, pautas de programas de televisão, como o Documento Especial na TV Manchete e Programa Goulart de Andrade no SBT.

Essa é a fase da inauguração do tema “democratização da comunicação”, contraditoriamente, dentro de veículos de difusão de massa. Paralelamente à prática com sucesso de uma rádio livre como a Reversão, despertando a curiosidade de toda a população, a luta pela democratização da comunicação começa a se organizar de forma institucional e constante. Em maio de 1989, é organizado o Coletivo Nacional de Rádios Livres, que promove encontros estaduais e nacionais, e divulga a prática em universidades, sindicatos, entidades profissionais, movimentos sociais e outros.

Durante o Primeiro Encontro Nacional de Rádios Livres, realizado na Universidade de São Paulo, com apoio da Escola de Comunicações e Artes, em maio de 1989, o Coletivo denuncia o festival de concessões de canais com critérios políticos, dentro da filosofia “é dando que se recebe”, promovida pelo Executivo, e contesta o Plano Básico de Distribuição de Canais, que prevê um total de 3.063 emissoras de rádio e um total de 320 emissoras de TV para o Brasil, apontando como viáveis mais de 15 mil emissoras de rádio e mais de 8 mil de TV.

As plenárias definem que “rádios livres são aquelas que vão ao ar sem pedir autorização a quem quer que seja”, portanto, englobando rádios de conteúdo democrático ou não. A idéia é exercer a liberdade de comunicação, tanto quando se trata de relações particulares como quando se trata de questões coletivas, de domínio público. O objetivo é a instalação do maior número possível de emissoras em todo o País.

Aprova-se também o texto de um projeto de emenda constitucional, liberando a faixa radiofônica de FM para emissoras de âmbito local, sem fins lucrativos e de baixa potência, mediante registro em órgão municipal competente. Os debates sobre a vantagem da legalização se iniciam e há grupos que discordam da necessidade de manter laços com o Estado, sob pena de oficializar o movimento.

O Coletivo promove manifestações, escolhendo a data de 26 de abril, aniversário da Rede Globo, como o Dia Nacional pela Liberdade de Comunicação. Após o Terceiro Encontro Nacional de Rádios Livres, realizado de 29 a 31 de março de 1991, na cidade de Macaé (RJ), a Aesp manifesta-se em editorial no seu boletim de informação:

“A realização de um encontro de ‘rádios livres’, eufemismo com que se autodenominam os operadores de estações que agem clandestinamente, causou profunda revolta entre os empresários da radiodifusão de São Paulo e Rio, que tomaram conhecimento da notícia. Estes não podem aceitar o fato de pessoas envolvidas em prática criminosa anunciarem com antecedência os dias, hora e local de seu encontro (…).”

Na mesma frente de luta, mas expandindo a atuação e os objetivos, são fundados 19 Comitês Estaduais e Regionais de Democratização da Comunicação, que se unem no Fórum Nacional de Democratização da Comunicação, do qual é um dos coordenadores o professor de Ética e Legislação em Jornalismo, da ECA-USP, José Carlos Rocha, congregando mais de 300 entidades, entre as quais a Fenaj – Federação Nacional dos Jornalistas, a Fitert – Federação Interestadual dos Empregados em Emissoras de Rádio e TV, Aneate – Associação Nacional das Entidades de Artistas e Técnicos e Sindicatos de Trabalhadores na Área de Vídeo e Cinema.

Com o desenvolvimento da luta institucional, a emenda constitucional proposta pelo Primeiro Encontro de Rádios Livres é concretizada em um artigo da formulação do Projeto de Lei Zaire Rezende – Lei da Informação Democrática, que se propõe a substituir a Lei de Imprensa, de 1967, e que passa a tramitar no Congresso Nacional, a partir de abril de 1992.

O texto prevê, entre outros avanços para a democratização da comunicação, a liberação das ondas do ar para rádios e tevês comunitárias, de baixa potência e sem fins lucrativos, deixando de mencionar a autorização em órgãos municipais ou do Estado e condicionando a autorização a um simples registro no cartório local. A base de sustentação da emenda é o artigo 5º, inciso IX, da Constituição.

O texto extraído da monografia “O Outro Lado da Voz do Brasil” escrito pela jornalista Marisa Meliani, por ocasião da sua defesa de tese de mestrado na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). – nota 10 com distinção e louvor

Comments

1985
17/03/2004 20:44

Em 1985 já operava a radio alternativa fm, na zona norte de sp. Ela foi citada em algumas materias da epoca. Nesse período , até 1988 ela realizou mais de 300 transmissões e funcionou discreta e regularmente as sextas (noite), sabados (manha) e um dia a mais durante a semana (aleatorio). O sinal da emissora cobria toda a zona norte de sp + regiões vizinhas, sendo citada na monografia de uma estudante de comunicação da USP, que escreveu muito sobre o tema.

RÁDIOS LIVRES
WAGNER 25/04/2006 20:28

A PARTIR DA 2ª METADE DOS ANOS 80 AS RÁDIOS LIVRES SE MULTIPLICARAM. O ARTIGO CITA AS PIONEIRAS E PRINCIPAIS RÁDIOS, MAS HAVIAM MUITAS.
NA ZONA LESTE DE SÃO PAULO ALGUNS RÁDIO-AMADORES E OPERADORES DA FAIXA DO CIDADÃO MANTINHAM JUNTO A SEUS EQUIPAMENTOS TRANSMISSORES EM FM.
O ARTIGO CONSEGUIU EXPRESSAR EXATAMENTE COMO SE DEU O MOVIMENTO, E AS RAZÕES DE SUA DECADÊNCIA.
HOJE EXISTEM MUITA RÁDIOS “PIRATAS”, MAS SEUS PROPÓSITOS ESTÃO MUITO DISTANTES DAQUELAS PRIMEIRAS ESTAÇÕES TRANSMISSORAS.
MUITAS FORAM AS VEZES EM QUE “SUBI CORRENDO” NA TORRE PARA RETIRAR A ANTENA DE VHF DO TRANSMISSOR DE FM, TEMENDO O EXTINTO DENTEL (HOJE ANATEL).
FOMOS FELIZES.

Gostou? Então apoie o projeto Rádio Livre 95 no Patreon!
Become a patron at Patreon!

Tags: , , ,