O que são rádios livres

O que são rádios livres

Por Rodney Brocanelli

Algumas informações contidas no presente texto foram extraídas da seguinte obra:
“Rádios Livres, O Outro Lado da Voz do Brasil”
MELIANI, Marisa – São Paulo, 1995, Tese de Mestrado, ECA/USP.

Rádios comunitárias: livre para navegar nessas ondas?

Olá para todos. A temática das rádios comunitárias está voltando a ordem do dia com força total. Para quem nãosabe, esse tipo de emissora funciona sem permissão do governo federal. Em geral, possuem baixa potência de transmissão e seu alcance é restrito a um bairro ou a uma comunidade. A inspiração para o surgimento dessas rádios no Brasil foram as free radios européias, principalmente as da Inglaterra e Itália. A onda chegou timidamente por aqui nos idos da década de 70, ganhou um certo fôlego nos anos 80 e se consolidou de vez nos 90?s.

Talvez não seja exagero dizer que as rádios comunitárias são um dos fenômenos mais interessantes de comunicação dos últimos anos no país, só perdendo para o surgimento da Internet. Como o próprio nome já diz, essas emissoras são direcionadas para os ouvintes das próprias regiões de onde estão emitindo o seu sinal. Com isso, elas ganham uma maior identificação com os moradores de sua comunidade que buscam informações do seu bairro, da sua rua. Daí, a enorme audiência angariada por essas estações.

Algumas pessoas perceberam o enorme potencial de comunicação da radiodifusão comunitária. E passaram a usa-lo “para o mal” criando emissoras que copiam o modelo das emissoras comerciais, tocando as músicas da parada de sucesso e veiculando anúncios publicitários ou então veiculando mensagens religiosas de igrejas denominacionais. O sinal de muitas delas chega a cobrir toda uma cidade, contrariando a ética das rádios livres.

A proliferação das rádios comunitárias em São Paulo, como não poderia deixar de ser, irritou os donos de estações comerciais. E o contra-ataque não poderia ter sido mais virulento. Entre outras medidas, campanhas de “esclarecimento” informavam aos seus ouvintes do “risco” de interferências que uma emissora de baixa potência poderia causar no sistema de comunicação entre aeroportos e aviões. Esgotado esse caminho, a briga passou ao âmbito jurídico. Uma guerra de liminares está sendo travada entre a Abert (Associação Brasileira das Emissoras de Rádio e Televisão) e as associações que defendem as rádios de baixa potência. A coisa promete ir longe.

+++++++++++++++++++++++

Como se vê, a temática das rádios comunitárias não é simples como parece a primeira vista. Mas o grande público já está tendo uma idéia melhor do que está acontecendo, graças a uma melhora na cobertura de imprensa. A Folha de S. Paulo, através do jornalista Daniel Castro, é o veículo que melhor está se sobressaindo no assunto. O jornal tem o mérito de mostar os vários ângulos da questão, sem maniqueismos de qualquer espécie. O jornal pode tanto falar de uma emissora picareta como a Rádio Planeta 90, pertencente a um falso padre (o Padre Chico) cujo sinal chega até a Santa Catarina ou abrir espaço para rádios comunitárias enquanto projetos sociais como a Rádio Favela, de Belo Horizonte, que está situada numa das maiores favelas da cidade, a Serra. Outros jornais não podem fazer o mesmo, até porque muitos deles estão ligados a empresas que possuem estações de rádio.

Outros veículos que se destacaram ao abrir seu precioso espaço para a temática das emissoras de pequena potência foram as revistas Imprensa e Caros Amigos.

+++++++++++++++++++++

O apoio do cantor e compositor Lobão a causa das emissoras comunitárias não chegou a ser surpresa. Vários outros artistas demonstraram sua simpatia no passado ainda que de maneira informal como Maurício Pereira (ex-Mulheres Negras), Kid Vinil e o conjunto Língua de Trapo. Concidentemente, todos estão de fora do “esquemão” das grandes rádios.

+++++++++++++++++++

Interessante notar que a recente ofensiva da Abert na justiça serviu para unir as entidades defensoras dos interesses das rádios comunitárias, em especial o Fórum Democracia na Comunicação, liderado pelo professor universitário José Carlos Rocha e a Aperloc, de Lucy Martins. O movimento, de uma maneira geral, nunca primou pela coesão, o que acontece no movimento dos Sem-Terra ou no Sem-Teto. Varias dissidências foram acontecendo ao longo dos anos. Hoje, curiosamente, todos estão na mesma corrente para a frente. A explicação é simples. Como a imprensa está acompanhando o caso, ninguém quer ficar longe dos holofotes. Quanto maior exposição na mídia, mais prestígio. Isso acaba atraindo possíveis novos filiados. E mais dinheiro para essas associações.

Como isso funciona? Em troca de uma mensalidade, esses grupos de defesa prometem uma espécie de guarda-chuva jurídico caso aconteçam eventuais apreensões de emissoras, entre outras coisas, o que é pouco para quem deveria defender de forma institucional as rádios comunitárias.

O QUE É RÁDIO LIVRE ?

Você já ouviu falar em rádio livre? Não. E rádio pirata? Também não. E rádio comunitária? Bem, se você nunca ouviu falar nesses tipos de rádio, não se preocupe. Elas existem, mas são ignoradas pela grande mídia.

Rádio livre (ou pirata, ou comunitária) é um tipo especial de emissora. Ela não possui permissão do governo para seu funcionamento. Opera com baixa potência de transmissor, fazendo com que o seu alcance fique restrito a apenas um bairro ou região de uma cidade. Essas rádios surgiram na Europa, por volta da década de 60, montadas por pessoas que estavam insatisfeitas com o que ouviam nas emissoras oficiais. Algumas dessas emis soras, que surgiram aos montes, se preocupavam apenas em tocar músicas que não tinham espaço nas outras rádios, como o emergente rock and roll. Outras tinham o propósito de fazer oposição ao governo, com mensagens de forte teor político. Apesar da repressão das autoridades, muitas rádios livres sobrevivem até os dias de hoje.

O movimento de rádios livres apareceu no Brasil lá pela segunda metade da década de 80. Primeiramente era apenas um divertimento de técnicos em eletrônica. Depois, grupos políticos de esquerda e estudantes universitários colocaram suas emissoras no ar. Como não poderia deixar de ser, o governo da época abriu fogo contra esse tipo de radiodifusão. Muitas rádios foram fechadas, com seus mantenedores sendo processa dos.

No começo da década de 90, as rádios livres do Brasil obtiveram uma grande vitória com a absolvição do jornalista Léo Tomaz, que dirigia a rádio Reversão, em São Paulo. Estava criado um precedente jurídico importante que favorecia os acusados de crime contra o Código Brasileiro de Telecomunicações.

Com essa vitória, o movimento de rádios livres mudou de perfil. Grupos religiosos passaram a ver nessas emissoras uma boa maneira de fazer proselitismo religioso. Outras pessoas enxergaram um modo fácil de se ganhar dinheiro, vendendo anúncios e espaço de programação. Algumas chegam a comercializar uma hora de programa por R$ 200. A alegação é que esse dinheiro cobre custos operacionais. Mas não é dif&ia cute;cil prever que existe um lucro exagerado aos que mantem essa prática.

Existe um projeto no Congresso visando regulamentar a radiodifusão livre. Graças a outras prioridades, sua tramitação é comparavel ao caminhar de tartaruga. É dificil prever quando sai essa tal lei. Enquanto ela não sai, as emissoras operam, torcendo para que a fiscalização do ministério das Comunicações não venha interromeper as transmissões. A grande mídia (incluindo a impressa) po r razões óbvias, ignora o assunto e até faz campanha contra. Tudo isso é uma pena, pois as rádios livres, desde que regulamentadas de um modo sério, poderiam prestar serviços a comunidade e a cultura.

RÁDIOS LIVRES NO MUNDO

O conceito de rádio pirata nasceu na Inglaterra. No final da década de 50 algumas emissoras foram montadas e transmitiam a partir de barcos ancorados na costa inglesa para burlar a legislação.

Uma das emissoras mais emblemáticas dessa época foi a Rádio Caroline, criada para combater o monopólio da estatal BBC e veicular o emergente rock and roll.

Na Itália, esse tipo de rádio se adequa a um outro perfil, mais politizado. É nesse país que nasce o conceito de rádio livre. Faziam muito jornalismo, veiculavam programas de debates. Eram vinculadas a grupos de base, minorias e marginalizados. Também na Itália, as rádios livres foram criadas para combater um monopólio, desta feita o da RAI.

Na França, não foi diferente. Tanto que em 1981, o presidente socialista François Mitterand assinou um decreto de regulamentação.

Mesmo nos EUA, que aparentemente possui a legislação mais liberal no setor de comunicações, rádios livres ocupam espaços no ar desde a década de 20.

E os ventos de liberdade não tardariam a chegar aqui no Brasil.

RÁDIOS LIVRES NO BRASIL

Antes da história da rádios livres no Brasil propriamente dita, é interessante falar das primeiras transmissões não-oficiais do país. Os primeiros vestígios datam de 1931. O publicitário Rodolfo Lima Martensen monta uma emissora não-oficial na cidade de São Pedro, estado do Rio Grande do Sul.

Bastava alguns conhecimentos de eletrônica para colocar um transmissor no ar. A sua rádio transmite por dois finais de semana. No dia seguinte a segunda transmissão, o chefe da Estação Telegráfica, o equivalente ao Dentel da época, ao contrário do que se poderia imaginar, levou seu apoio a iniciativa, com a disposição de transforma-la em oficial. Nasce assim, a Rádio Sociedade do Rio Grande do Sul e Martensen ac aba ocupando o cargo de diretor-geral.

A Rádio Cultura de São Paulo como conhecemos hoje também nasceu como uma emissora não oficial.

Ela foi ao ar em 1933, com o prefixo de DKI-A Voz do Juqueri. A estação funcionava numa garagem.

Após a intervenção da polícia, os seus mantenedores decidiram legaliza-la. O processo não foi muito difícil e no dia 16 de junho de 1936 nasce a Rádio Cultura de São Paulo.

O marco inicial da história das rádios livres segundo a jornalista Marisa Meliani é o ano de 1971. Um adolescente de 16 anos, Eduardo Luiz Ferreira Silva, amante de eletrônica, montou um transmissor de 15 watts na cidade de Vitória, Espírito Santo. A rádio é batizada com o nome de Paranóica FM.

Primeiro, a estação começa a operar apenas no quarteirão. Depois, o alcance cresce e a emissora passa a ser sintonizada em toda a cidade.

Durante seis dias, a Rádio Paranóica transmitiu uma programação que misturava música e críticas a figuras da cidade de Vitória. A festa dura pouco. A partir de uma denúncia, a polícia foi até a sede da emissora. Não foi difícil localiza-la, uma vez que o telefone do local onde ficavam os estúdios era dado no ar. Eduardo e seu irmão, que ajudava nas transmissões, são presos. O que era uma brincadeira de crianças, foi considerado pelas autoridades da época como uma “armação dos comunistas para desestabilizar o regime”. Vale lembrar que em 1971, o Brasil estava sob a tutela dos militares.

Mesmo com a prisão e todas os seus desdobramentos, Eduardo continua até hoje a colocar emissoras livres no ar.

Ainda que com todos os problemas políticos, emissoras livres continuaram sendo colocadas no ar durante a década de 70. Mais precisamente em 1976, entra no ar a Rádio Spectro, em Sorocaba. As transmissões duravam duas horas quase que diariamente. Seu responsável era um garoto de 14 anos.

Vale notar que até então quem escreveu a história das rádios livres no Brasil foram adolescentes, cujo principal objetivo era se divertir.

A Spectro funcionava na casa do pai do garoto. A programação era eminentemente musical e a rádio recebia pedidos musicais dos ouvintes. Para tanto, era dado um telefone de um vizinho. Mesmo assim, com esse caráter clandestino, a emissora recebia cerca de 20 telefonemas por dia.

Sorocaba seria o berço de uma nova fase da história das rádios livres no Brasil. Em 1981, o número de estações aumentaria para 6: Estrôncio 90, Alfa 1, Colúmbia, Fênix, Star e Centaurus.

A multiplicação de emissoras acabou chamando a atenção das autoridades e de setores da grande imprensa. O jornal “Cruzeiro do Sul”, começou uma campanha sistemática contra as rádios clandestinas. A gritaria do jornal, levou o Dentel a fazer incursões pela cidade á caça dos piratas.

Mesmo com tanta coisa conspirando contra, mais emissoras livres foram colocadas no ar. Em janeiro de 1983, quarenta e duas rádios estavam funcionando. A explicação para tal fenômeno era simples.

Sorocaba é uma cidade que possui muitos técnicos (e estudantes) em eletrônica. Com a chegada das férias escolares, houve a disponibilidade necessária para que esses jovens se dedicassem a suas rádios particulares. A principal fonte de informação para a montagem dos transmissores caseiros eram as revistas importadas que traziam esquemas para a construção. As peças eram compradas em qualquer loja especializada.

As emissoras que surgiram tocavam muita música. O “play-list” não diferia muito das rádios oficiais. O crescimento das rádios foi abortado com o recrudescimento da fiscalização do Dentel. Em 1984, as estações não passavam de 15.

O movimento de rádios livres em Sorocaba não tinha uma base ideológica no seu início. Depois de um tempo de existência, o discurso adotado por seus integrantes era o de “revolta contra o monopólio das FMs”. Em outras palavras, a luta era contra a política de concessões promovida pelo Governo Federal, que visava a distribuição de emissoras aos seus apadrinhados políticos.

Pouco tempo depois, o conceito de rádio livre chegava a capital de São Paulo. No dia 20 de julho de 1985, era levada ao ar a Rádio Xilik. A iniciativa foi de alunos da PUC-SP. As transmissões partiam do campus daquela faculdade.

A Xilik já tinha uma forte sustentação ideológica. A principal influência de seus organizadores foram as experiências européias de rádios sem concessão, principalmente as da Itália e da França.

As transmissões da Xilik começaram em plena Nova República. Mesmo com a redemocratização, a política de distribuição de concessões continuou a mesma. Rádios e TVs para os aliados do governo.

Uma declaração do então ministro das Comunicações, Antônio Carlos Magalhães é emblemática:

“Preferimos dar as TVs e rádios aos amigos”.

A Xilik não reduzia a sua militância na luta pela democratização da comunicação apenas com as emissões. A rádio soube usar como poucas a imprensa. Comunicados avisando de suas transmissões eram enviados as redações. Com isso, a emissora foi ganhando espaço editorial em jornais e revistas.

Com todo as reportagens publicadas pela imprensa, a intenção era chamar a atenção da sociedade e até mesmo das autoridades.

Diversas personalidades políticas manifestaram apoio a emissora na época de suas transmissões. Os candidatos Lula e Eduardo Suplicy gravaram manifestações de apoio. Suplicy foi categórico: “a cidade estava precisando disso”.

O Dentel tentou por duas vezes fechar a Xilik, mas sem sucesso. A experiência da Xilik seria o marco inicial para várias outros projetos de rádio livre.

A Rádio Vírus, surgida na mesma época, tem a influência da Xilik, mas tem uma proposta estética mais elaborada. Ela nasceu no Complexo Hospitalar do Hospital das Clínicas, de São Paulo. Suas transmissões aconteciam a partir do quarto dos médicos residentes. A área de atuação era a região em volta do HC.

Além de estudantes, a radiodifusão livre atraiu também grupos ligados a partidos políticos. Em abril de 1986, ia ao ar a Rádio Dengue, colocada no ar por simpatizantes e militantes do PT (Partido dos Trabalhadores). A emissora não tinha sede fixa. Mas transmitia sempre para a região da Barra Funda.

Em algumas ocasiões, seu sinal era captado em outras regiões do centro da cidade, como a Luz, Santa Efigênia e Santa Cecília.

A Dengue era uma emissora jornalística. A música era deixada para um segundo plano. Nas eleições para governador do Estado na época, a rádio teve um papel fundamental ainda que estivesse comprometida com o partido.

Mas nem só de política vivia a Dengue. Ela participou ativamente das campanhas de vacinação contra a pólio. A participação foi tão ativa e que chegou a ganhar um prêmio do governo do Estado pela prestação de serviços na ocasião.

O marketing da Dengue era agressivo, distribuindo adesivos junto aos moradores da região e também pela divulgação boca-a-boca.

Outra campanha da qual a Dengue teve ampla participação foi contra o fechamento do Pronto Socorro da Barra Funda, segundo o decreto do então prefeito Jânio Quadros. A emissora ajudou a organizar uma passeata de protesto. O barulho foi grande e o resultado positivo. O PS não foi fechado.

A Dengue primava também pela irregularidade das transmissões. Poderia transmitir por duas semanas seguidas e ficar outras cinco sem ir ao ar, assim como as suas “co-irmãs”. Tudo para driblar a fiscalização do Dentel.

Nem só de rádios com conteúdo político viveu o movimento de rádios livres. Havia estações de caráter comunitário. Sem ligações com nenhuma organização e despidas de ideologia política. Um desses exemplos é a Rádio Seilá. O seu principal projeto era estabelecer contato com os moradores do bairro do Ipiranga (de onde transmitia) e levar ao ar os seus anseios, as suas nece ssidades. Tudo isso temperado com música, muito humor e debates.

Outra emissora que se destacou foi a Rádio Totó Ternura, de alunos de comunicação da ECA-USP. O humor era a marca registrada da Totó. O principal patrocinador era a marca de dentifrício Dentel (uma brincadeira com o departamento de telecomunicações). O seu elenco de locutores se destacam figuras como Lessie, a sexóloga; Rex Humbard, o cão pastor; Rin-Tin-Tin, o cão policial e o Snoopy, o correspondente nos EUA. Uma rádio feita só por cachorros ilustres. O nome, aliás, vem de uma brincadeira com um dos apelidos de Antônio Carlos Magalhães, na época ministro das Comunicações: Toninho Ternura.

Na mesma época, no Rio de Janeiro, estavam sendo colocadas as primeiras emissoras livres no ar. A Rádio Frívola City começa a transmitir em 30 de agosto de 1986 e foi uma das primeiras a fazer a analogia com a luta dos que estão sem terra: “a reforma agrária na terra fracassou, foi reprimida. Nós estamos lutando pela reforma no ar”. Inúmeras rádios livres foram colocadas no ar nesse período.

Algumas deixaram história para contar. Outras experiências não chegaram até os dias de hoje. Mas o que importa é que todas vinham com uma só motivação: a luta pela democracia na comunicação.

Nos anos 90, o movimento daria uma reviravolta importante em sua história. Para saber o que aconteceu, é importante conhecer a história da Rádio Reversão.

A Reversão operava na Vila Ré e seu sinal atingia num raio de 10 quilômetros. O número de ouvintes se aproximava dos 800 mil, segundo dados da própria emissora. A proposta da rádio era anarquista. O jornalista Léo Tomaz, seu idealizador definia: “o nosso projeto é de autogestão, de livre pensamento e liberdade de gestão. Somos pela existência de todas as tribos, incluindo a nossa”. O slogan levado ao ar era emble mático: “Reversão FM 106,5, a sua rádio livre; livre como todas gostariam de ser”. A proposta da rádio era levar aos ouvintes a programação musical de bandas da cidade, privilegiando as da zona leste, área de atuação da Reversão.

Os recursos financeiros vinhas da Casa de Cultura. Como o próprio nome já diz, é um espaço cultural com bar, música ao vivo e espaço para exposições.

A Rádio Reversão, assim com a Xilik, foi uma das emissoras que utilizou bem a imprensa para passar os seus ideais e anunciar as emissões.

A opção feita pelo independente e alternativo feita pela Reversão era radical como mostra a abertura de uma reportagem publicada pelo Jornal da Tarde em 1991: “Nesta FM, Gil, Chico e Caetano são proibidos. Bossa-nova e samba de morro, nem pensar. E os músicos de outros estados estão definitivamente banidos de uma programação musical que alterna rock inglês e americano com fitas-demo “made in Zona Leste”. Pode parecer estranho ter a Reversão num movimento que buscava a democracia. Mas a emissora era bem peculiar. Não tocava músicas que estavam “vinculadas a urbanidade”. Léo Tomaz explicou em uma entrevista a sua posição. Para ele, os artistas consagrados “cumpriram o seu papel em determinado momento, mas não podem servir de tampão, de crivo para a produção cultural”. Tomáz até tem razão, mas isso não pode servir de justificativa p ara uma censura as avessas. O discurso ideológico da Reversão beirava a arrogância: “Não queremos ser ouvidos, queremos nos expressar”, dizia Léo. “Não há nada mais democrático que um botão”, dizia outro integrante da equipe de apresentadores.

Mas Léo Tomaz e sua Reversão não entrariam para a história das rádios livres no Brasil apenas por sua programação diferenciada.

A rádio teve os seus equipamentos apreendidos pela Polícia Federal em 1991, a partir de uma denúncia feita pelo Dentel. “O fundador da rádio infringiu o Código Nacional de Telecomunicações, funcionando sem licença do governo federal”, disse à época Itanor Neves Carneiro, chefe do Departamento de Ordem Política e Social da Polícia Federal. Tomáz era indiciado no artigo 70 do Código Brasileir o de Telecomunicações.

O processo se arrastou por quase três anos. A expectativa era grande. A sentença, em qualquer das possibilidades, poderia criar um fato histórico na história do movimento de rádios livres.

Em março de 1994, o juiz Casem Mazlom divulga finalmente a sentença: Léo Tomaz é inocente. Estava criado um precedente importante para os futuros processos. Segundo o juiz, não há crime em se colocar rádios não-autorizadas, sem fins lucrativos e sem motivações político-partidárias.

Depois do desfecho desse processo houve uma explosão no número de rádios livres na cidade de São Paulo. Com a jurisprudência na lei, houve tranqüilidade necessária para que se multiplicarem as emissoras. A fiscalização poderia até apreender os equipamentos, mas a batalha jurídica terminaria, em grande parte dos casos, em absolvição das pessoas envolvidas.

As emissoras que foram sendo colocadas no ar depois de março de 1994 apresentavam um perfil diferente das que vieram antes. A saber: rádios com projetos comerciais e rádios ligadas a grupos religiosos.

Curioso notar que a Reversão, uma emissora anarquista foi quem possibilitou a proliferação de rádios com fins lucrativos. As rádios com caráter comercial surgiram a reboque da absolvição de Léo Tomaz. Não possuem base ideológica. A filosofia dessas novas emissoras é ganhar dinheiro.

Vendem anúncios aos comerciantes do bairro e horário de programação. Um programa de duas horas pode chegar a custar ao bolso do apresentador de R$ 200,00 a R$ 400,00.

A programação musical não difere muito das rádios FMs comerciais.

Dentro do movimento de rádios livres, as rádios que possuem uma filosofia comercial não são bem-vistas. Porém, existe uma resposta na ponta da língua aos que criticam essa prática:

“Tem anúncios sim, senão, como é que eu vou viver, como vou comer?”, é o que disse Valmir Ribeiro Torres, dono da Rádio Nova Geração em entrevista a jornalista Marisa Meliani.

Para algumas pessoas que militam há mais tempo no movimento, emissoras como a de Valmir colaboram para que exista um preconceito vindo por parte dos formadores de opinião. Além disso, a venda de horários e espaço comercial é munição certa para os inimigos das rádios livres, leia-se rádios oficiais. Nenhuma dessas emissoras com caráter comercial está devidamente registrada. Não pagam impostos e enc argos trabalhistas. Aliás, nem é necessário muito esforço para não pagar as obrigações trabalhistas. Os funcionários recrutados pelos “comerciais” são em geral gente desempregada, jovens locutores que saem de cursos de locução de fundo de quintal e veteranos locutores que já não tem mais espaço no rádio.

Outro tipo de rádio livre que proliferou no dial foram as de cunho religioso. A intenção é clara: difundir a “palavra de Deus”. são mantidas com apoio do comércio das regiões em que operam (leia-se comerciais).

Diferentemente das rádios de filosofia comercial, quando uma emissora evangélica vende anúncios o objetivo é investir em equipamentos de transmissão e melhora na propagação do sinal. O programa típico de uma rádio religiosa é o que mistura a pregação de um pastor no estúdio e hinos religiosos.

Alguns cultos são transmitidos diretamente dos templos. Uma das rádios que mais se destacou nesse setor foi a Free FM, situada no bairro da Vila Nova Cachoeirinha. Sua programação abre espaço para igrejas de variadas tendências como a Presbiteriana, a Batista, e a Assembléia de Deus e Deus é Amor.

Na Free é proibido vender anúncios e até pedir doações. Outro mantenedor de rádio evangélica é contundente nas críticas: “O negócio do Edir (Macedo) é ganhar dinheiro. A rádio livre não está preocupada com isso”, diz Paulo de Oliveira, que montou a Rádio Central FM.

As rádios evangélicas despertam dentro do movimento de rádios livres sentimentos diferentes. Alguns, claramente agnósticos, são contrários ao uso do rádio para pregar mensagens religiosas. Outros são mais tolerantes. Mas não se pode esquecer que se a luta das rádios livres é pela democracia na comunicação, todos devem ter acesso ao meio, independente de credo.

Na década de 90, as rádios universitárias também ganharam impulso. São rádios ligadas a universitários, não necessariamente ligadas a universidades, herdeiras da Xilik, rádio livre dos alunos e professores da PUC. Em geral, são rádios mantidas por alunos de universidades e/ou faculdades. Não contam com o apoio explícito das reitorias, mas estas fazem vista grossa para o trabalho dos alunos.

Entre as que mais se destacaram nesses anos 90, podemos citar a Rádio Muda e a Rádio Onze.

A Rádio Muda é mantida por alunos da Unicamp (Campinas) e opera a partir do campus da faculdade num local conhecido como “Pau do Zeferino” (caixa d’água próxima ao Teatro de Arena), e possui um transmissor provisório de 12W operando em FM a aproximadamente 105,7 MHz. A gestão da rádio é auto-gestiva, feita por um coletivo, formado por todos aqueles que veiculam programas. A base da programação é feita pelos alu nos, professores e funcionários da universidade. A Muda é uma das rádios que usa a Internet como meio de divulgar o seu ideal e a sua programação. Seu endereço eletrônico éhttp://www.fee.unicamp.br/~muda/

Outra rádio universitária que se destacou foi a Rádio Onze. Ligada ao Centro Acadêmico da Faculdade de Direito-USP, a rádio ultrapassou os limites do campus e virou referência para muitas outras emissoras. A trajetória da Onze é não-linear. Ela existe desde o ano de 1989, sempre sendo tocada pelos alunos da faculdade. Conforme alguns iam se formando e deixando a faculdade, outros v inham para tomar conta da emissora. Em 1993, a Onze ganha um novo impulso com a chegada de Rodrigo Lobo. No ano seguinte, ela passa a funcionar fora do âmbito da faculdade, operando a parir da Casa do Estudante, espécie de centro residencial universitário dos estudantes do Largo São Francisco, que fica na Av. São João, bem no centro de São Paulo. No dia 11 de agosto daquele ano, ela faz a sua inauguração oficial e conta como patrono o jurista G offredo da Silva Teles Jr., que redige um manifesto de apoio.

A Onze ia ao ar ainda de forma irregular. As transmissões constantes só começariam em 1995, com a chegada de novos integrantes. Ao contrário das outras rádios ligadas a universitários, a emissora abriu o seu microfone a comunidade do centro da cidade e com uma proposta arrojada: o próprio ouvinte poderia fazer o seu programa. Bastava trazer um projeto, que este era submetido a apreciação dos administradores da rádio. Sendo aprovado, era logo colocado no ar. Muitas vezes, o apelo para que as pessoas comuns fizessem parte do quadro de programadores da Onze era feito no ar.

No ano seguinte, a Rádio Onze se tornaria o centro das manchetes de jornal ao lançar a campanha “Maluf, deixe-nos dormir em paz”. O então prefeito de São Paulo, Paulo Maluf, manifestou o desejo de reabrir o elevado Costa e Silva (o Minhocão) ao trafego noturno. Só que ele se esqueceu das pessoas que moram nos prédios que ficam ao lado da via expressa. Iriam deixar de ter sossego a noite, o único período em que ficam livres do barulho dos automóveis e da poluição.

Uma vinheta que ia ao ar nos intervalos dos programas avisava aos ouvintes do engajamento da emissora na luta contra a idéia do prefeito. Vários programas especiais de debates foram feitos para analisar os prós e os contras da medida. Foram feitas manifestações com recolhimento de assinaturas dos moradores contrário ao projeto.

Todo o barulho feito gerou dividendos de imagem para a emissora. Diversas reportagens de jornais e TVs destacavam o papel da Onze na resistência dos moradores do Centro. Logo depois, o prefeito Paulo Maluf abririra mão da reabertura do Minhocão à noite.

O sucesso do Projeto Minhocão tornou a estação mais conhecida e abriu caminho para novas campanhas de interesse público. A mais recente campanha foi de prevenção e esclarecimento sobre a AIDS. O mote da campanha era “AIDS, responsabilidade de todos nós” e foi realizada em parceria com o GIPA (Grupo Independente de Prevenção a AIDS), uma organização não-governamental.

A Rádio Onze, a exemplo da Xilik e da Reversão, conseguiu usar a mídia para divulgar seus projetos e realizações. Uma façanha admirável, uma vez que nos anos 90 a grande imprensa reduziu o espaço para a temática das rádios livres.

Mas nem só de campanhas sociais viveu a Rádio Onze. A emissora abriu espaço para artistas em começo de carreira, que não tem chances de mostrar seu trabalho em outras rádios. Vários programas funcionaram como uma plataforma de lançamento. Mas o projeto mais audacioso na área musical se intitulou “Ao Ar Livre”. Eram shows de música ao vivo transmitidos direto do terraço do edifício onde ficava instalada a Onze, com a presença de público.

Além desse papel sociocultural, a Rádio Onze foi uma das únicas emissoras a se insurgir contra a campanha de desqualificação do movimento de rádios livres organizada pelas emissoras comerciais, o que será explicado a seguir.

As rádios livres, obviamente que se transformaram em um sucesso de público. Em parte, pelo que foi explicado acima, agregando a eles mais um fator: cada emissora falava para sua comunidade, abordava os problemas dos bairros e regiões atingidos pelas emissoras. Isso criou, naturalmente, a identificação com os ouvintes, que se “ouviam” no rádio, por assim dizer. Mesmo não sendo possível medir a audiência das rádios livre s, é certo que elas atrairam a atenção de uma fatia considerável de público.

As rádios oficiais ficaram assustadas com essa fuga dos ouvintes para as rádios livres. A saída não foi outra a não ser contra-atacar. No dia 22 de novembro de 1996, foi lançada a uma campanha organizada pela AESP (Associação das Emissoras de Rádio e Televisão do Estado de São Paulo) e Sertesp (Sindicato das Empresas de Rádio e Televisão do Estado de São Paulo). O principal apelo utilizado na campanha, segundo os seus organizadores, é a luta contra o risco de interferência que seria ocasionado pelas rádios livres no sistema de comunicação dos aeroportos, polícia e bombeiros. Vários spots foram veiculados durante a programação normal das rádios alertando para o que se considerava um “risco a sociedade”.

Do ponto de vista técnico, esse risco era possível sim, mas nos primórdios do movimento de rádios livres. Os transmissores não possuíam um componente fundamental para evitar a interferência chamado PLL.

Como se dá a interferência? Para explicar isso, é só imaginar a freqüência geral de rádio como uma linha reta. Numa seqüência, vem as faixas em AM, OC, OT, entre outras, não nessa ordem. A faixa do FM vem antes do espaço usado pelo sistema de comunicação dos aeroportos, polícia e bombeiros. Sem o componente PLL, o transmissor caseiro não ficava “travado” na mesma freqüência e pas seava por entre o dial do FM até chegar na faixa dos serviços públicos. Com o avanço tecnológico, os novos transmissores que vinham das fábricas caseiras, possuíam a placa de PLL, tornando seguras as emissores, sem provocar riscos. Até mesmo a ação da fiscalização, apreendendo emissoras, colaborou para a segurança das transmissões. Os que tiveram as emissoras fechadas, tinham que ir a luta para voltar ao ar e , naturalmente, tinham encomendavam um novo transmissor, mais moderno, logo de saída.

Muitos mantenedores de rádios livres, naturalmente, ficaram com medo. E com o natural desconhecimento técnico, poucos se dispuseram a de reagir. Foi aí que entrou a Rádio Onze, que lançou a campanha “Pirata é a Mãe”. Com vinhetas exibidas na programação e cartazes com o slogan colados nas principais ruas de São Paulo, a emissora foi uma das poucas que reagiram a essa perseguição. “Pirata é a Mãe” quebrou a barreira e ganhou espaço em jornais e TVs.

Outro aspecto que era muito discutido na questão das rádios livres era a lei. Muitos consideravam que essas emissões eram irregulares. Outros, não. A argumentação de quem defendia as rádios livres era embasada nas Garantias e Direitos Individuais como premia a Constituição de 1988 em seu artigo 5, inciso 9 e nos pactos que envolvem os países ocidentais como o Pacto de São José da Costa Rica do qual o Bra sil é signatário desde 1992. O artigo 13 do Pacto diz o seguinte:

“não se pode restringir o Direito de Expressão por vias ou meios indiretos tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de freqüência radioelétrica ou de equipamentos ou aparelhos usados na difusão de informações, nem por quaisquer outro meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de idéias e opiniões”.

Com a crescente demanda de rádios livres sendo colocadas no ar, e as brechas que a lei concedia, não houve outra saída a não ser regulamentar esse tipo de radiodifusão. Parlamentares de diversas tendências ideológicas enviaram projetos de regulamentação. Um deles, apoiado por diversas entidades e associações que defendiam os interesses das emissoras livres é o de número 1521/96. No entanto, o ent&a tilde;o Ministro das Comunicações Sérgio Motta e o deputado Koyu Iha, relator da a Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicações e Informática, apresentaram substitutivo que defendia os seguintes pontos:

1 – raio de ação de apenas 1 km; uma única freqüência em todo país (nos EUA são 12Km);

2 – potência máxima de apenas 25 Watts;

3 – exclui as rádios livres e as TVs;

4 – não inclui anistia às rádios já fechadas;

confere a ANATEL poderes para fechar as rádio, sem necessidade de decisão judicial

É claro que essa versão não agradou a ninguém, a não ser as emissoras comerciais. O projeto foi aprovado na Câmara Federal. Depois, foi para o Senado Federal e, depois de dois anos, foi aprovado. A tramitação desse projeto durou quase dois anos. O consenso geral era de que o projeto não era o ideal, apresentava falhas, mas pelo menos era alguma coisa, melhor que nada.

O projeto já foi sancionado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso e a ANATEL (Agência Nacional de Telecomunicações) ficou encarregada de cuidar dos processos de concessão para a operação de rádios comunitárias ou RadCom (como ficou denominado esse tipo de radiodifusão).

Enquanto isso, a fiscalização continua fechando as rádios (agora perante a lei) irregulares. Na justiça, as coisas também não estão indo bem para os mantenedores de rádios livres.

Muitos processos estão terminando em condenação. Agora, existe uma infração a lei e não existe mais atenuantes.

O que vai acontecer com o movimento de rádios livres daqui por diante é uma incógnita. Quem se aventurar a colocar uma emissora no ar sem regulamentação talvez se inspire no que era feito nos anos 80: transmissões sem regularidade, com poucas horas de duração, e com um caráter anônimo.

As rádios livres com intenções comerciais vão deixar de existir aos poucos.

O senador Odacir Soares (PTB-RO) apresentou projeto que anistia quem operava rádios comunitárias em desacordo com as normas do Código Brasileiro de Telecomunicações de 1962, extinguindo as centenas de processos movidos contra as pessoas e entidades que operavam emissoras comunitárias antes da aprovação, em fevereiro deste ano, da lei que regulamentou o serviço.

Por outro lado, a Agencia Nacional de Telecomunicações (ANATEL) ainda não expediu até hoje (nov.98) autorização para o funcionamento de qualquer rádio comunitária no país.

A história das rádios livres no Brasil continua sendo escrita.

Rodney Brocanelli
jornalista e um dos articuladores da Rádio XI

Email: rbrocanelli arroba uol.com.br

Retirado de http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2003/03/249551.shtml

Gostou? Então apoie o projeto Rádio Livre 95 no Patreon!
Become a patron at Patreon!

Tags: , ,