A quem interessa a divisão da sociedade?
O atual estado de intolerância ao pensamento diferente, manifesto nas agressões que começam nas redes sociais e terminam em confrontos físicos no meio da rua, é o resultado de um processo de catequização para os credos seculares, nascido com a ascensão daquilo que o filósofo John Gray chamou de religiões políticas. Tal fenômeno transfere as energias que antes eram canalizadas em rituais sacros para o confronto político.
Imagine que a religião é um livro e que a história da fé é um seriado produzido pela Netflix. A política moderna, essa que nós conhecemos e vivemos diariamente, seria apenas mais um capítulo nesse livro. Os movimentos revolucionários que tanto influenciaram os rumos da sociedade nos últimos 200 anos[1], por sua vez, seriam apenas mais um episódio nesse seriado. Essa é a tese exposta por John Gray em seu livro Missa Negra – Religião Apocalíptica e o Fim das Utopias[2].
O comunismo, que defendia a ideia do materialismo histórico, e o nazismo, que apelava para a eugenia – uma espécie de racismo que se pretendia científico – são colocados como semelhantes em seus respectivos projetos de negar a religião enquanto se apresentam como alternativa secular, mas que exigiam – cada um a seu modo – crença e devoção semelhante a qualquer outra religião institucionalizada.
Durante o período da Guerra Fria, duas vertentes dessa chamada religião política disputavam abertamente (ou nem tanto) o posto de melhor alternativa administrativa no imaginário coletivo. As duas propostas eram, por definição, utópicas. Alegavam, cada uma também à sua maneira, ser o único caminho para uma sociedade mais justa, e que a oposição levaria a humanidade para a autodestruição.
As propostas se baseavam em conceitos pseudocientíficos, mas eram apenas mais um exercício de fé. Quando a URSS colapsou em 1991, era de se esperar que os atores dessa disputa fossem chamados à realidade. Não foi o que aconteceu. Movimentos neoconservadores deram continuidade às teorias dualistas.
Em países subdesenvolvidos, como os que temos por toda a América Latina, o marxismo continuava sendo uma opção para resolver os problemas sociais. O neoconservadorismo, por sua vez, começava a ensaiar suas primeiras investidas. Na época ninguém imaginava o estrago que isso faria.
As duas vertentes lançavam mão de um verniz de argumentação científica, mas eram inspirados em crenças apocalípticas de mais de dois mil anos.
Os primeiros cristãos acreditavam estar vivendo um momento de grande transição, no qual a humanidade chegaria ao estágio da igualdade absoluta, em que não haveria mais “choro e ranger de dentes”[3]. Todos os males do mundo deixariam de existir. A fome, a guerra, a morte, a opressão, todas as coisas ruins ficariam no passado.
Essa teleologia[4] cristã, posteriormente, foi reinterpretada. Sua significação, um pouco mais racionalizada, transformou-se numa metáfora da mudança espiritual de cada indivíduo. Essas visões apocalípticas, no entanto, estão impregnando o imaginário popular desde o período daqueles primeiros cristãos.
A crença de que um embate definitivo entre as forças do bem e do mal traria a solução para todos os problemas terrestres é algo que está enraizado em nossa cultura. É essa crença que facilita nossa identificação com os mocinhos e mocinhas da ficção – quase sempre influenciados pela lógica maniqueísta[5] e teleológica – e nos possibilita acreditar num final feliz. O problema começa quando essa crença ativa nossa necessidade sacrificial (cf. O nascimento da religião, segundo René Girard). Agrupamo-nos em milícias compostas por pessoas que rezam pelo mesmo credo.
Quando o cristianismo começou a perder forças, a crença de que o mundo precisava acabar para que algo melhor pudesse surgir das suas cinzas foi ficando cada vez mais forte.
As antigas crenças religiosas, agora travestidas de movimentos políticos, alegavam uma racionalização que se pretendia científica. Cada grupo se apropriando de um recorte da realidade, tal qual os cegos que apalpavam o elefante na fábula indiana.
Foi dessa forma, rachados em milícias dogmáticas, que perdemos o poder de mobilização e aumentamos a tensão social.
Esvaziadas de seus respectivos sentidos metafísicos, os credos que compões as diversas religiões políticas parecem ansiar por um “bode expiatório” que possa, com seu sacrifício, diminuir temporariamente as tensões sociais. É esse o caminho para o qual estamos seguindo. As tensões geradas nos conflitos contra as minorias são só a ponta do iceberg. A divisão popular em tribos fragmentadas só interessa aos sacerdotes dos tais credos políticos. Duvide de quem diz ter a solução para os problemas do mundo ou se assuma como praticante de uma religião política secular. A decisão é sua.
José Fagner Alves Santos
[1] Socialismo, positivismo, anarquismo, fascismo, nazismo, e tutti quanti.
[2] John Gray é também autor de Cachorros de Palha, livro que eu ainda não li, mas que é muito bem avaliado pela crítica especializada. Missa Negra foi publicado, no Brasil, pela Editora Record em 2007.
[3] Referência a Lucas 13:28, que diz: Ali haverá choro e ranger de dentes, quando virdes Abraão, e Isaque, e Jacó, e todos os profetas no reino de Deus, e vós lançados fora.
[4] A teleologia pode ser definida como uma doutrina que identifica a presença de metas, fins ou objetivos últimos guiando a natureza e a humanidade, considerando a finalidade como o princípio explicativo fundamental na organização e nas transformações de todos os seres da realidade.
[5] O maniqueísmo é o nome dado ao dualismo religioso sincretista que se originou na Pérsia e foi amplamente difundido no Império Romano (século III d.C. e IV d.C.), cuja doutrina consistia basicamente em afirmar a existência de um conflito cósmico entre o reino da luz (o Bem) e o das sombras (o Mal), em localizar a matéria e a carne no reino das sombras, e em afirmar que ao homem se impunha o dever de ajudar à vitória do Bem por meio de práticas ascéticas, espirituais.